terça-feira, 13 de março de 2012

o espírito da floresta

o povo huni kuin

meu nome é ibã, na primeira língua; na segunda língua isaias sales; nasci em 1964, terra indígena alto rio jordão;
eu vou falar sobre as tradições de conhecimento do nosso povo huni kuin, o que viviam e faziam, principalmente dos conhecimentos do meu pai, que aprendia com seu povo mais antigo, com seu pai principalmente, com seus tios, com seus primos, com seus cunhados, esse é o povo mais atrás, muito tempo;
meu pai nasceu na aldeia que hoje chama araçá, alto rio jordão, nas terras da aldeia novo segredo; meu pai é um homem conhecedor de todos os conhecimentos da tradição, chamado txana; eu sou filho do txana, txana quer dizer um homem de conhecimento de todas as tradições; o meu pai tem esse conhecimento, ele é filho do seu francisco menezes, conhecido por xiku kurumin, ele é dua bake, que é a família das caças, dos animais, da onça pintada; ele aprendeu seu conhecimento com seu povo: francisco menezes, com chico mirim, com rio branco, biló, joão sereno, artur, sampaio, então eles, essa família vem de muito longe, vem do pessoal do rio envira, vem do rio purus, vem do tempo da correria, do século dezenove, vinha correndo, se defendendo do nordestino, dos caucheiros peruanos que atacavam todas as fronteiras dos nossos rios; o povo huni kuin vem correndo, perdendo seus conhecimentos, muitos processos deixaram de fazer, com tudo isso até chegar no rio jordão;

dentro do rio jordão, o meu pai nasceu no meio do seu povo, ele acompanhava os conhecimentos, todas as várias festas: festa de txirin, festa de bunawa, festa de mariri, festa mesmo de pajelança como hoje nós estamos falando da ayahuaska; então meu pai conhecia tudo, ao mesmo tempo com as ervas, conhecimento das ervas medicinais, ele aprendia, perguntava pro pai dele da bebida sagrada, perguntava como podia fazer com ervas medicinais, perguntava como organizava as festas da tradição; então meu pai aprendia nesses conhecimentos tudinho;
quando seu pai tem conhecimento bom, você acompanha tudo;
nesse tempo que eu nasci em 64 meu pai era homem de cativeiro, homem escravo do patrão seringalista que estavam chegando, do nordestino, do caucheiro peruano; o meu avô foi encontrado pelos cearenses, se misturou um pouco com o acreano, criou-se junto com cearense, por isso que meu pai falava língua portuguesa, lia um pouco;
nessa época, meu avô vinha na carreira, não tinha como fazer festa de tradições, meu pai também entrava no processo de trabalho, cortava seringa e fazia roçado pro povo branco, aí não tinha mais como fazer festa importante; mas nunca deixava, sempre algum escondidinho, fazia sua festa;
não tinha como fazer mais como fazia essas tradições no kupixawa [maloca] não, aí perdemos o conhecimento, quer dizer esquecemos os conhecimentos, não tem como fazer;
quando você vai fazer, o povo branco chega e diz: - isso é besteira, você não entende, fala direito...
e essas coisas todas... mas não perdeu nada, bota tudo dentro do conhecimento, só no pensamento;
enfim, aí eu ia crescendo, meu pai sempre no final da tarde cantando, sempre fazia preparo com seu povo, aí era a vontade crescendo, e meu pai nesse conhecimento dele, aprendeu com seu tio mais antigo, com família mais antiga; e a família mais antiga foram embora, falecendo no seringal, das doenças que vem com o branco, doenças desconhecidas, sarampo, coqueluche, malária, febre amarela e matou todos aqueles importantes todos;
desde o século dezenove pra cá nós perdemos quase todos os nossos arquivos importantes, os velhos com toda sabedoria e [quase] acabava tudo, mas... não acabava tudo, nós perdemos, povo huni kuin esses conhecimentos, mas hoje tem muitas maneiras pra buscar incentivar o conhecimento;

romão

desde quando eu nasci, quando eu tinha 5 anos de idade meu pai fazia festa de tradição bonita, chamada festa de katxanawa, fazia festa de batismo, fazia [festa de] txirin com seu povo;
eu me interessei muito nas cantorias da ayahuaska que ele cantava, aprendia várias músicas nos seus conhecimentos antigos, com seu povo mais antigo, aprendia com eles;
aí eu cresci olhando meu pai fazer preparo de ayahuaska, tirando as ervas... aí comecei a perguntar, quando eu era já grande, perguntava o que significa isso que tá fazendo, aí meu pai me passava: - olha, essa bebida é sagrada... e contava a história, como surgia essa bebida, ele me contava as histórias de como povo huni kuin como nós encantava com animal chamado jibóia;
eu fiquei muito curioso nesses conhecimentos do meu pai; de vez em quando meu pai fazia festa de pajelança, eu interessado participava, mas eu não comungava, eu era menino, somente eu olhava, chegava na hora de sono eu ia dormir...
meu pai comungava ayahuaska junto com seu povo, meu pai pintava com urucum; quando tomava ayahuaska, no outro dia ele tomava banho com as ervas e eu perguntava: - mas o que você tá fazendo...
- esse aqui meu filho, essa bebida nossa, porque eu tô fazendo festa de pajelança com seus tios, com seu avô, eu tô fazendo pra ver, tratar desse cidadão que tá doente e pode melhorar; essa ayahuaska serve pra ver nosso futuro, pra ver nosso passado, pra ver o presente meu filho, esse é um encanto, não tem como dizer; muito antes de nós nascer já tinha ela em nossa cultura, esse aqui é nosso, do huni kuin...
aí no final da tarde meu pai cantava, me dava muita vontade, isso que o conhecimento do meu pai fazia, aí eu me aprofundei, até chegar a hora certa pra mim, eu comecei a ter vontade de fazer como meu pai fazia;
então os conhecimentos do meu pai vem assim, conhecimento mais com o povo dele, não é que vem e aprende com qualquer um não, vem com o povo dele, aprendeu com o pai dele, o pai dele aprendeu com o pai do meu avô, esses conhecimentos já vinha... muito antigo a música tradicional da ayahuaska, principalmente eu falo assim do conhecimento da ayahuaska;

mais único que ficou foi meu pai, um cara muito interessado, muito sabido, aí eu acompanhava tudo esse processo do meu pai, do conhecimento dele, com o respeito dele com as tradições eu me interessei muito, com mais idade que eu tenho, chegando idade, meu pai cantava no final da tarde, eu perguntava qual era o significado dessas músicas, aí me deu mais vontade quando ele fala o significado pra mim:
- essa música cura parente, sopra na hora o parente doente, dor de cabeça, dor no estômago, dor no corpo, essa ayahuaska mostra, ela traz pensamento pra você tratar com seu povo, deve ter muito respeito nossa bebida tradicional ayahuaska;
eu me interessei no conhecimento do meu pai e comecei a praticar, a aprender, o meu pai me ensinava oralmente, eu aprendi na oralidade, até que chegou a demarcação da nossa terra em 85, eu já tinha 19 anos, quando nós recebemos demarcação da terra em 85;
antes, quando vinha na carreira, não tem como fazer a festa importante como meu avô fazia, aí meu pai sempre contava as histórias, só nas histórias do meu pai, e eu não tenho conhecimento como meu pai fazia tinha, então eu pensei vou pedir a meu pai:
- então pai, hoje nós temos nossa terra demarcada, nós não estamos mais corrido assim de perder nossos conhecimentos, então eu quero que você vai organizar pra nós, eu tô me interessando muito com meu povo, meus irmãos, minhas irmãs, meus cunhados, meus primos, nós queria ver, como nós jovens podíamos fazer...
aí meu pai começa a mostrar:
- olha, esse é katxanawa, essa é festa de batismo, essa festa de ayahuaska, como prepara, o feitio, como pode temperar a ayahuaska;

espírito da floresta

temos 29 anos de trabalho nesses conhecimentos e a gente tava registrando essas histórias do huni kuin não é surgida agora, não é agora que a gente vai mostrar, já há muito tempo que a gente vinha com o nosso processo, esse conhecimento que eu tô registrando pesquisei junto com meu pai romão sales tuin kaxinawa;
eu pratiquei já o conhecimento, quando eu saí com 19 anos, eu me desloquei pra cidade pra formar  professor; aí eu comecei estudando, de 1983 até 2000; aí eu terminei o magistério e os professores me deram tarefa: - ibã, agora você vai pesquisar seus conhecimentos, você já terminou seu magistério, agora você vai aprofundando mais os seus conhecimentos;
mas ao mesmo tempo, eu tinha escrito pouco do meu conhecimento; eu voltei e comecei a perguntar pro meu pai: - pai, agora não é só no oral, agora eu tô aprendendo a ler e a escrever e eu quero registrar, escrever, não quero mais esquecer, na oralidade, quem tem cabeça boa, ele vai aprender, quem tem cabeça meio ruim é muito difícil ele aprender oralmente;
aí eu fiquei então nessa, nunca mais vai esquecer, nunca mais vai perder dentro do meu coração, dentro do meu pensamento tava pensando; então eu comecei a perguntar de novo, ele vai me dar agora resposta certinha;
nesses cantos da ayahuaska tem três tipos de música que nós cantamos: chamava a luz, yube txanima; chamava dau tibuya, ver as mirações, e kayatibu, marear com a força; três partes que nós cantamos na cerimônia do espírito da floresta ele me ensinou essas três passagens diferentes:
- olha, essa aqui só pra chamar a luz, essa só pra miração, essa na hora mesmo que você vai falando com ele, pra mandar embora, chama diminuir a força;
então eu pratiquei três posições, três caminhos da nossa música, aí isso que eu comecei a escrever; comecei a escrever na nossa língua e produzindo no caderno, todos os anos eu participava do curso de formação, eu trazia meu caderno e mostrava: - é assim? e falavam pra mim: - é nesse rumo aí esse trabalho...
em 2000, terminando o meu magistério, já entreguei 52 músicas, escritas, eu não estava acompanhando mais meu pai só na oralidade, meu pai me ensinava som, eu já acompanhava na escrita, cantando na escrita, praticando na escrita; 
aí fiquei cada vez mais olhando, então olhando por outro lado, esse conhecimento ficava de longe, pra nós o povo jovem huni kuin, nós não fala mais nossa língua direito, nós não sabe contar nossos mitos, nós não sabe cantar as nossas músicas tradicionais importantes, a gente ficava já muito longe;
era isso que eu estava pensando, então nesses conhecimento do meu avô, do primo do meu avô, do conhecimento do meu pai, então agora eu vou juntar tudo, eu quero escrever, nesse que ficando registro da música;
em 2000 eu já entreguei livro ao mesmo tempo, desse trabalho todo resultado de cantoria do meu pai, saiu o livro que eu botei o nome, chama espírito do floresta;

essa música, desde 1992 que a gente iniciou trabalho de pesquisa em espírito da floresta;
a gente aproveitou durante a formação publicamos vários materiais didáticos, dentro dos nossos ensinamentos com nossos alunos, fizemos dois livros com espírito da floresta, tem dois discos;
então registro dessa já tem cd de cantoria pronto, registro onde a gente começou a cantoria, já tá escrito pronto, aí olhando pelo outro lado, eu terminei meu magistério e agora tô entrando no processo de se formar na universidade;
ao mesmo tempo eu tô com meus alunos, com meus sobrinhos, com o acelino, que fez os desenhos do primeiro livro que eu fiz, ilustrando a história da ayahuaska, que escrevi na língua portuguesa; e já tendo livro da minha pesquisa, tenho que dar continuidade; agora eu olhando essas cantorias, essas frases; essa frase eu quero transmitir, transformar com desenho essa fala do espírito do floresta;

desenhos

então isso que eu comecei junto com os meus alunos, ensinando meus alunos: - testa pra nós, desenhar...
aí começamos desenho: a jibóia, desenho dos pássaros que nós falamos, não é desenho que nós inventamos não, desenho que tá explicando na música, aí surgiu esse desenho de cantoria;
em 2002 pra 2003 eu começava a juntar os alunos, que a maioria já tá me acompanhando bem nesse trabalho, e comecei a mandar desenhar, principalmente comecei a mandar a desenhar o meu filho, bane: - bane, experimenta esse desenho como eu tô falando... quando eu falo ele vai me acompanhando com todos esses desenhos;
aí olhando ele fazer esse desenho deu pra entender: - porque eu tô fazendo esse desenho? porque o povo branco... essa bebida ayahuaska não é só pra indígena não, em vários lugares já espalhou; em cima disso nós estamos apresentando esse nosso conhecimento, só apresentando música, os txai tem muita curiosidade: de onde é que surgiu, quem que fala... então melhor que eu explicar esses pontos, melhor explicação no desenho;
pensei assim, pra melhor o povo que não conhece essa bebida das tradições, melhor entender dessa regra, dessa regra do espiritual que nós fala; aí comecei trabalhando com desenho, com os alunos, chegou o professor assessorando nosso trabalho, eu estava na faculdade, encontrei o txai amilton, mostrando desenho, ele tinha formado em mestrado com artes... 
aí que eu comecei a olhar, então vai agora surgir essa música, não é mais música imaterial não, agora vai ser material, vem de longe, o imaterial nós vamos colocar material pra ver;
por exemplo, na música que diz txã mane beime vem como um tipo de buzo, buzina, igual buzinando, essa música você ouve igual sopro, igual soprando, um tipo de buzina, várias buzinas que nós temos: aviso, buzina pra animação, buzina de miração; tem buzo de rabo de tatu, buzo de cerâmica, então quando vem a força, é igualmente o buzo: vvvuuummm... então é isso que nós desenhamos, um tipo de buzo;
nós fizemos mais assim entender a palavra que a gente fala, cada palavra fala muita coisa quando você está explicando, uma palavra já é muitas coisas: como japó, vem ligado com anta, anta ligado com veado, veado ligado com porquinho, porquinho ligado com tatu, tatu ligado com jibóia, jibóia ligada com água, água ligada com céu, céu ligado com a terra...
essa música que chama nai mãpu yubekã: nesse pedaço já tem muita palavra, cada pedacinho remendado; nai é o céu, mãpu é o pássaro, yube é a jibóia; então diz assim, nai mãpu yubekã, todos esses três remendados juntos, que nós fala; então nessa música tem vários animais da floresta que nós fala dentro da música;

então, em 2010 saiu uma lei lei de incentivo à cultura; o que nós vamos incentivar?
essa ayahuaska é coisa muito realidade, conhecimento do meu pai, então foi assim que eu comecei desenho; em 92, eu comecei agora registrar o conhecimento do meu pai, até escrever tudo, depois de terminar escrita, agora surge essa música no desenho, pra mostrar, pra ver tanto as crianças, pra ver os brancos, pra ver em vários lugares;
em 2011 nós recebemos pequena ajuda do governo pela lei de incentivo à cultura; eu convidei agora os artistas indígenas, nós fizemos um encontro de artistas-desenhistas indígenas na aldeia mae bena no alto rio tarauacá, onde meu filho trabalhava como professor, passamos 15 dias construindo material, imaterial fazendo material, com trabalho muito importante; o resultado dessa conversa é que nossa cantoria virou agora pequeno filme pra entender;
então no dia 23 de agosto apresentamos nosso trabalho numa exposição em rio branco, junto com apresentação musical do grupo de cantores huni kuin do jordão e artistas convidados;
agora o txai está organizando, editando trabalho que nós estamos querendo entregar, fazendo pequeno filme de txai puke dua, de kayatibu, de yube txanima... então o txai tá nessa responsabilidade e eu na responsabilidade de juntar com o povo, organização;

eu agradeço muito desse trabalho que a gente tá fazendo, nesse trabalho que a gente tem é muito forte, forte o que, forte a língua, na música eu encontro que a língua é realidade dentro da nossa música, por isso que a nossa música vem, é música, a cantoria vai terminar por aí não, é infinito, vai embora, não tem fim como: - ah, vou terminar esse conhecimento...não! não tem fim esses conhecimentos que eu tô fazendo, vamos continuar mais trabalho mais importante, tanto daqui, eu vou entregar também a todos os mestres o conhecimento que a gente tem, eu mergulho mais com a ayahuaska... são vários conhecimentos que nós temos, mas a realidade que eu achei foi esse conhecimento com as ervas medicinais e a ayahuaska, eu posso dizer mantendo a qualidade da minha vida de aprendizagem junto com a minha comunidade;
essa busca de conhecimento é meu interesse, não é interesse de ninguém por trás de mim, é interesse meu que é minha tarefa, essa que eu tô cuidando pra não parar esse movimento importante que a gente tem;
hoje agora é hora, temos terra demarcada, não temos mais correria; hoje temos tranqüilidade, por que nós recebemos um pedacinho de terra e agora é hora de nós organizar o nosso conhecimento e nossa cultura, importante registrar o que tem do nosso conhecimento, é isso que eu proponho, é essa minha vontade, esse o meu gosto de fazer o trabalho com muito prazer e ainda buscando mais conhecimento;

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